Moedas Virtuais e Regulação – O que nos espera ?
O mercado de tokens e criptmoedas (ou “criptos”, carinhosamente chamadas por seus entusiastas) foi, recentemente, objeto de manifestações oficiais das principais autoridades financeiras do Brasil. Tanto o Banco Central do Brasil (BC) quanto a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) emitiram notas contendo suas principais opiniões e entendimentos sobre o crescente mercado de moedas virtuais.
Esse tipo de manifestação não é novidade. Em 2014, quando as tecnologias de blockchain e moedas virtuais começaram a ganhar os holofotes dos meios mainstream, o BC emitiu um comunicado para definir seu posicionamento sobre o tema, incluindo alertas gerais sobre a utilização dessas ferramentas.
Por meio desse primeiro comunicado, em um tom cauteloso, o BC descreveu que as moedas virtuais não se confundiriam com as moedas eletrônicas (conceito próprio aplicável às contas pré-pagas) e que, por sua característica inovadora à época, estavam sob análise de autoridades monetárias. Além disso, o BC alertou o mercado sobre potenciais riscos atrelados às moedas virtuais, especialmente em relação à volatilidade característica desses ativos e às possíveis inseguranças de wallets do mercado.
Muita coisa aconteceu desde então. O bitcoin, cujo valor unitário era de aproximadamente de USD 630 à época do comunicado, decolou para um valor de USD 14.000 (até agora). As ofertas iniciais de moedas (ou initial coin offerings – ICO) dispararam e tornaram-se meios eficazes de levantamento de recursos para startups em diversos países. Outras tecnologias de blockchain amadureceram e viabilizaram o nascimento de novas moedas (litecoin, ripple, ether).
Diante da evolução das tecnologias de moedas virtuais, os reguladores brasileiros buscaram sofisticar seus conhecimentos sobre o tema e interagir com o mercado para melhor entender os potenciais impactos dessas tecnologias no Sistema Financeiro Nacional. A consequência natural dessas medidas foi a publicação dos novos comunicados do BC e da CVM sobre o mercado de moedas virtuais e ICO, em meados de novembro deste ano.
O novo comunicado do BC não mudou significativamente o posicionamento inicial do regulador, ressaltando que as moedas virtuais podem estar sujeitas a riscos imprevisíveis de variação e que seu armazenamento pode estar vulnerável a ataques cibernéticos. Além disso, o regulador ressaltou que, até o momento, não identificou a necessidade de regulação dos referidos ativos ou das entidades que viabilizam a sua negociação, por não haver verificado a existência de riscos relevantes para o SFN.
Um ponto desse comunicado, no entanto, chamou a atenção do mercado: de acordo com o regulador, operações com moedas virtuais que impliquem transferências internacionais referenciadas em moedas estrangeiras não afastariam a obrigatoriedade de se observar as normas do mercado de câmbio, incluindo a necessidade de se utilizar instituições autorizadas a realizar tal tipo de operação.
Ora, considerando que a tecnologia em que as criptos estão baseadas é o blockchain que, por natureza, é uma tecnologia descentralizada, tal manifestação alarmou aqueles que operam moedas virtuais no país. De acordo com o BC, transferências internacionais viabilizadas por meio de tais moedas deveriam ser registradas e formalizadas por meio de contratos de câmbio.
Do ponto de vista prático, isso poderia representar um contrassenso às tecnologias das moedas virtuais e andaria na contramão dos princípios de descentralização e autonomia adotados pelos entusiastas dessas operações. A fiscalização dessas operações também se provaria ineficiente, dado que as transferências de moedas poderiam ficar “abaixo do radar” regulatório. Este tema deverá ser muito discutido nas próximas interações com o regulador.
A CVM por outro lado, adotou uma postura mais firme em relação à aplicação das moedas virtuais no âmbito do mercado de capitais. O FAQ publicado pela autoridade em seu site explicou os principais conceitos relacionados aos ICO, incluindo as suas modalidades e formas de aplicação.
De um modo geral, a CVM optou por definir parâmetros gerais de aplicabilidade das regras de ofertas públicas de valores mobiliários às ofertas de moedas virtuais, criando uma rule of thumb a ser utilizada por pessoas interessadas nessas operações: caso o objeto de um ICO seja um ativo cujas características se assemelhe a um valor mobiliário (por exemplo, no caso de ações, um token que pague dividendos e ofereça participação no capital social da companhia), o ICO deverá ser registrado junto a CVM sob as modalidades atualmente previstas pela regulação.
Ou seja, caso um ICO tenha características similares à oferta de um valor mobiliário, o emissor e a oferta deverão ser registrados sob algum dos regimes permitidos pela CVM (por exemplo, ofertas públicas de valores mobiliários, ofertas públicas com esforços restritos e ofertas públicas efetuadas por plataformas de investimentos participativos). Caso o ICO tenha essas características e não seja registrado de acordo com as regras da autoridade, os emissores poderão estar sujeitos a penalidades impostas pela CVM.
Por outro lado, a CVM estabeleceu que um ICO que não envolva a oferta de valores mobiliários (por exemplo, emissão de utility tokens) pode não estar sujeito ao arcabouço regulatório existente, prescindindo de registro prévio junto a autoridade.
Além disso, a CVM surpreendeu boa parte dos investidores em criptomoedas ao publicar um Ofício Circular que divulgou esclarecimentos sobre investimentos, por parte de fundos de investimentos, em criptomoedas. Em linhas gerais, o ofício esclareceu que, por não fazerem parte da lista de “ativos elegíveis” de fundos de investimento (ou seja, ativos que podem ser objeto de aquisição por tais veículos), criptomoedas não poderiam ser objeto de investimentos por parte de fundos de investimento.
Ainda que isso tenha causado “alarme” na mídia menos especializada, na prática, pouca coisa mudou. Tradicionalmente, as normas da CVM sobre fundos de investimento têm um caráter exaustivo, sendo que fundos só poderiam aplicar no que é expressamente autorizado pela autoridade. Como criptomoedas não contavam na lista de ativos elegíveis, a boa prática corporativa já dizia que fundos de investimento não investissem em tais ativos. Sendo assim, a CVM apenas confirmou algo que já era pacífico no mercado.
Por outro lado, a CVM mencionou que está acompanhando outras estruturas relacionadas a investimentos em criptos por meio de fundos de investimentos. As chamadas “estruturas sintéticas”, em que fundos investem em fundos no exterior (que estão autorizados a operar moedas virtuais), estão sob a lupa regulatória e poderão ser objeto de regulação caso a CVM identifique riscos em tais operações.
O mercado das moedas virtuais está em plena ascensão, os players da indústria estão se consolidando cada vez mais e o interesse do público é cada vez maior. Da mesma forma, o interesse dos reguladores, as preocupações sistêmicas e legais e as discussões sobre a validade desses instrumentos estão a todo vapor. Ainda é cedo para definir se novas regulações serão apresentadas ou se os reguladores irão se posicionar de forma mais restritiva em relação a elas, mas é certo que os próximos capítulos serão muito interessantes.
Matheus Campanhã Cruz – Advogado sênior do escritório de advocacia SV Law, Matheus é especializado no mercado de pagamentos fintechs. Com mais de seis anos de experiência, passou pelo Pinheiro Neto Advogados e Itaú Unibanco, além de atuar na assessoria de grandes bandeiras, emissores e adquirentes. Matheus já esteve envolvido em operações bancárias e estruturação de transações financeiras.